EQUILIBRIUM.
Em Julho de 2006, completamente por acaso, assisti a um pequeno pedaço de um filme na entrada de um supermercado, enquanto o rebanho consumista e alienado com que viajei, se ausentava para a loja de roupas mais próxima.
Perdidos lá dentro, na voragem da calça de ganga e da T-shirt, deixaram-me ( julgam eles) cheio de sentimentos de culpa por não os acompanhar. Um ecrã gigante estava ali para exposição e venda e transmitia um filme.
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Na parte do filme que vi, percebia-se que era um filme de ficção cientifica. Não ligaria muito à coisa, não fosse o facto de se reconhecer a estética do ambiente totalitário.
As alusões ao “1984” de Orwell e ao “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley e a THX-1138 de F. Ford Coppola.
Observava-se a personagem principal. Expressão monolítica, fria. Mais um Stallone, pensei.
Mas não, aquilo tinha mais que se lhe diga.
Finamente consegui ver o filme todo. E a primeira percepção que tinha tido em Julho de 2006 era afinal bastante diferente. O filme chama-se “Equilibrium” e é uma muito boa Distopia acerca de uma sociedade totalitária, pós hipotética 3ª Guerra Mundial. Com algumas espantosas semelhanças com a realidade…mas buscando referências a vários passados que conhecemos, como sejam o Nazismo e o Fascismo, livros como o Admirável Mundo Novo de Huxley e 1984 de Orwell, identificando-se com o filme The Matrix, ao nível do objecto cinematográfico, por exemplo.
A história é simples de contar e nada complexa. Guerra devastadora – a Humanidade sobrevive – passa a reger-se por um novo código de conduta – Objectivo: para evitar novas guerras – criar a ordem – impor à força essa ordem se necessário.
O regime torna-se pois, monolítico, e decide como curso de acção primário, eliminar a guerra eliminando as emoções, o “sentir”. (Conhecemos isto actualmente sob a forma da suave ideologia do pragmatismo…)
Para se eliminar o “sentir” é necessário eliminar todos os objectos que façam as pessoas “sentir”. Livros, arte, música, toda e qualquer expressão de individualismo é proibida e punível com a morte. Eliminando o “sentir”, o resultado será o desaparecimento da guerra, da inveja, do conflito, de “sentimentos negativos” e o desaparecimento de tudo o que faz de nós faz, afinal, Humanos.
Para impor o poder, a ordem artificial e a autoridade visível simbólica, cria-se a figura tutelar do “Father /Pai” como símbolo de liderança.
Para conseguir fazer subsistir esse poder de forma não desafiada e essa ordem indisputada cria-se a força guerreira de elite denominada “Tetragrammaton”, cujos agentes são chamados de “Clérigos Tetragrammaton”.
Especializados na arte marcial da ” GunKata”; uma super forma de luta criada por estatística e métodos informáticos, para gerar eficiência no combate; super soldados especializados em esmagar qualquer dissidência. ( A ideia de mercado aqui é atrair o público “jovem” e simular um filme Matrix diferente…)
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Porque é que a alegoria desta distopia é muito interessante?
Porque o realizador/autor do argumento chamado Kurt Wimmer só tinha 20 milhões de dólares para fazer o filme e “teve que criar” a ilusão que tinha 100 ou 200. Criou essa ilusão e paralelamente, apesar do argumento não ser exactamente o ponto mais forte, conseguiu extrair dos actores o máximo, tendo ainda obtido Christian Bale como protagonista e este é mesmo um excelente actor. (Todos os outros acompanham de resto poderosamente a figura estranha que Bale representa , o Clérigo Tetragrammaton John Preston)
Wimmer, jogando com o argumento que tinha, procurou referencias a vários outros filmes – livros – distopias criando uma completa subversão e distorção dentro do argumento passando uma mensagem em várias dimensões.
Observe-se o totalitarismo que é procurado mostrar neste simples imagem que o realizador faz. Está a haver um comício/sessão de esclarecimento, cheio de palavras bombásticas e exortações acerca do acto de vencer dos Librianos – habitantes que estão a escutar isto. São declarados livres e vencedores. No entanto ao centro da imagem um guarda armado até aos dentes vigia olhando para a multidão, para verificar se existem desvios à norma.
A mensagem é anti ideologia, mas não anti ideológica. E não só anti ideologias comunistas e fascistas, mas também contra o actual novo truque de mercado ideológico chamado “neo liberalismo económico”. Conjugado com o lançamento de pistas de reflexão acerca do que é liberdade individual e “sentir”, e de “resistência” numa sociedade crescentemente “normalizada”
Tudo isto ao mesmo tempo metido dentro de um aspecto estético bem conseguido, jogando com as cores, branco e preto e indo filmar para Berlim, (para poupar nos custos, mas o simbolismo e a alusão são óbvias, porque existiu em Berlim o que se sabe).
Na imagem em cima pode ver-se isso mesmo, com a imagem do “Father” omnipresente nos ecrãs da sociedade normalizada (também uma alusão aos omnipresentes placards publicitários electrónicos das cidades) debitando a sua mensagem – a inspiração retirada do filme/livro 1984 é notória, embora aqui filmada à escala de rua, já não de uma casa ou num local de trabalho
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Christian Bale/ Jonh Preston é o melhor, o mais eficaz, o mais desapiedado Clérigo tetragrammaton. Tem uma especial capacidade para perceber quem à sua volta está a sentir.
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Minuto 14: Preston fala com Errol Partridge antes de lhe dar um tiro.
Partridge: sempre soubeste. (Perante a aproximação de Preston)
Partridge (lendo de um livro de W B Yeats) : “mas eu sendo pobre, sempre tive os meus sonhos”. Espalhei os meus sonhos debaixo dos teus pés”. Caminha gentilmente pois caminhas sobre os meus sonhos”
Partridge: Preston, presumo que sonhas.
Preston: Farei o que for possível para que sejam brandos contigo.
Partridge: Ambos sabemos que eles nunca são brandos.
Preston: então peço desculpa.
Partridge: Não.Não peças. Tu nem sequer sabes o que isso significa.
É uma palavra para um sentimento que tu desconheces.
Preston, não vês? Acabou:
Tudo o que nos faz ser o que somos é negociado.
Preston: não há guerra. Não há assassínio.
Partridge: o que achas que é aquilo que fazemos?
Preston: não.
Tu tens estado comigo. Tens visto a guerra, a inveja.
Partridge: Um preço elevado.
Eu pago-o com prazer.
Este diálogo corresponde à imagem mais abaixo tida na obscuridade, quando Preston mata o seu colega Errol Partrdige, pelo crime de sentir.
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Toda a população toma uma droga chamada “Prozium”( Prozac+Equilibrium) e vai todos os dias ao “Equilibrium”( a farmácia…) buscar a sua dose. Preston é tão bom, que chefiou a unidade que executou a sua própria mulher, sendo que esta, um dia, deixou de tomar Prozium e passou a sentir. Preston também persegue e mata o seu parceiro Sean Benn/o clérigo Errol partridge, que deixou de acreditar na farsa , deixou de tomar Prozium e começou a sentir.
O que despoleta a situação que irá fazer Jonh Preston começar a agir.
Este é “estranho” mesmo para os padrões da sociedade onde está e que nos é descrita. No fim entrevemos porquê: Preston é brutalmente dissociado de outras pessoas, é indiferente, quer tome ou não tome Prozium. Consegue parecer estar a sentir, mesmo não o estando. Consegue ser frio, mesmo não tomando drogas para isso. Preston mantém as suas capacidades guerreiras ao mesmo nível quer sob o efeito de Prozium quer não.
Preston liberta-se da sociedade opressora, precisamente através do significado simbólico poderoso que isso representa: o ser capaz de usar as suas capacidades de luta através da arte marcial da Gunkata, mas sem precisar de tomar Prozium para amplificar essas mesmas capacidades
Preston, é livre de tomar a decisão de atacar sozinho o sistema, por dentro, porque assim decidiu e assim o pode fazer.
Precisamente pelas características que Preston tem os seus superiores sabem disso e temem-no e decidem fazê-lo precipitar no erro, para dessa forma melhor o abaterem.
Põe-no em causa pelo facto de ele ter vivido com a sua mulher e nunca ter desconfiado que esta não tomava Equilibrium. Põe-no em causa pelo seu parceiro, o clérigo Errol partridge por este ser o companheiro que Preston não viu que se desviou do rumo.
Põe-no em causa porque existem cada vez mais habitantes que se estão a libertar por si próprios da toma do Prozium e a quererem fruir as coisas proibidas.
Põe-no em causa usando o seu novo colega, um novo clérigo, ambicioso de nome Brandt.
Esteticamente em “Equilibrium” que predomina é o preto, o cinzento e ocasionalmente o branco para estabelecer o contraste. Mas oq ue é muito bem feito a níveld e imagem é precisamente o que esta acima mostra: uma simulação de igreja com vitrais por onde uma ténue luz passa – uma ténue liberdade , enquanto cá em baixo, o clérigo, que se entrevé na imagem desroi a liberdade destruindo as suas vitimas.
A técnica de filmagem é soberba uma vez que isto é feito sem recurso a efeitos especiais, mas sim através da filmagem clássica, jogando com a luz, o tamanho da sala e dos contrastes, e fazendo por exemplo, “combates” no escuro, onde apenas se vê algo a acontecer muito depressa com raios de luz simulando disparos de balas. Percebe-se o que é , mas não se percebe o que é.
Existem várias coisas admiráveis em termos de verificação da liberdade humana neste filme e que actuam como exemplos. Umas das cenas notáveis é o facto de Preston ao segundo dia, em que deixa de tomar Prozium, começar a reparar em pormenores que antes lhe passavam despercebidos. Uma alegoria muito interessante é a passagem pelos subterrâneos da população (uma alusão ao metropolitano) onde toda a gente caminha sempre na mesma velocidade e com o mesmo ar.
Desperto, Preston começa a reparar nos “companheiros de viagem”. E percebe-se que existem alguns, por pequenos gestos, como por exemplo roçar as mãos para sentir o corrimão da subida, que estão “fora” do efeito da droga Prozium, mas que tem que disfarçar essa condição e viver, optar por viver, dentro da sociedade, até para, por dentro, fornecerem informações a quem está de fora a lutar para a alterar.
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Preston é traido, até porque começa a dar a entender já não estar sob o efeito de Prozium. É sumariamente julgado e condenado e está para ser executado quando se liberta.
O gatilho inicial disto tudo é o dia seguinte à execução do seu companheiro Partridge. Preston, de manhã, deixa cair a sua dose de Prozium e não toma uma nova.
E é a partir dai que tudo se desenrola. No final, Preston destrói por dentro o regime.
Já movido, nesta altura pelo sentimento de vingança e pela lembrança de como a sua mulher morreu. E isto após já vários dias em que não tomava Prozium. Vem também a descobrir que os seus filhos que o controlavam e que ele controlava, (uma sociedade onde todos se controlavam a todos) fingiam para ele, e que, na realidade, já não tomavam eles próprios, desde a morte da mãe, a droga Prozium.
Descobre Preston no fim, que, ao ter um diálogo frio e rápido com o número dois do regime, que o “Father”, o Pai, já não existia, (era o número 2 que o substituia) antes apenas a imagem do mesmo a debitar mensagens de propaganda e que o próprio número 2 do regime também não tomava a droga Prozium.
Libria, a terra totalitária, era controlada pelos ecrans de plasma espalhados pela cidade. Tipos vestidos de castanho, com uma indumentária bizarra afadigavam-se a comandar computadores, olhando para ecrãs de plasma.
Preston destrói o comando.
A imagem muda e cá fora, nas ruas daquela cidade totalitária, os guardas vestidos de preto, continuavam por todos os lados, armas na mão. Impondo a sua presença simbólica de força sobre os cidadãos anestesiados.
Ecrãs de plasma enormes passavam as imagens. A imagem muda, e vêem-se ecrãs na cidade a interromperem as imagens entorpecedoras que transmitiam. Os guardas continuam imóveis.
A última imagem que se vê no filme é a população, subitamente livre de constrangimentos, a rebelar-se e a atacar todos os guardas de preto que patrulhavam toda a cidade.
Uma rebelião a sério tinha começado.
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