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A PIRÂMIDE – ISMAIL KADARÉ

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Autor: Ismail kadaré.

Editora: Dom Quixote.

Na wikipedia:

a-piramide-ismail-kadareO livro foi escrito em  Paris e Tirana (kadaré é albanês);  entre 1988 e 1992. Reflecte a visão do autor, em relação ao que viveu, antes dessa época e ao que estava a viver nessa época.

Para todos os que o leram ou o lerem agora,  podemos, se fizermos um esforço comparativo ver como aquela realidade descrita por Kadaré há 20 anos não está tão distante.

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Kadaré desejava, acima de tudo, contar uma história acerca do  totalitarismo.

Contudo é mais (muito mais) do que só sobre totalitarismo.

É, também sobre o poder; e toda a simbologia associada a esse mesmo poder. E de como isso influencia o próprio totalitarismo e as formas que  este reveste, de país para país.

kadaré, ao escrever, para se proteger da rigidez totalitária estúpida da Albânia comunista situou a acção do livro no antigo Egipto. (3000 anos antes portanto).

piramide-kadareCriou o enredo da narrativa centrado num problema político/de regime: a construção de uma pirâmide – dedicada ao Faraó Keops – que seria, simultaneamente, o túmulo deste, após morte, e uma obra simbólica feita em vida do Faraó, cujo objectivo seria o de servir para demonstrar todo o seu poder sobre o povo egípcio e por extensão, do próprio império egípcio, para os  vizinhos.

Do ponto de vista da leitura, o livro não é nada simples; a tradução não ajuda, e está cheio de metáforas e alusões subliminares ao regime comunista albanês  (isto é, a uma forma peculiar de totalitarismo), mas não só. Podemos reconhecer os “tiques” de poder de qualquer regime ali explicados.

E também reflecte a influência a algum do ambiente pré queda do muro de Berlim (1989), de que o autor se apercebeu estando ainda a viver na Albânia (Kadaré saiu algum tempo antes da queda e pediu asilo político em França); mas o que é interessante verificar, por análise comparativa, da leitura do livro, é como todos os mecanismos de poder totalitários de uma ditadura obtusa, também podem, pelo menos alguns, ser replicados e encontrados numa  qualquer simpática democracia ocidental.

Como Portugal. Caso se preste atenção, bem entendido. Caso se queira prestar atenção, bem entendido. E independentemente dos partidos ou forças políticas que estejam no poder.

É um “estado das coisas” que Kadaré  mostra e nos convida a pensar sobre.

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A história começa com o Faraó Keops a anunciar, poucos meses depois de tomar posse, que não deseja mandar construir nenhuma pirâmide, tal como os seus antecessores tinham feito.

Esta declaração política perturba o equilíbrio.

Os vassalos, servidores, cortesãos, funcionários públicos, enfim toda a fauna social,  fica intensamente perturbada com a notícia.

Para sublimarem a preocupação há que encontrar uma explicação. E a explicação é passar-se a julgar essa atitude do Faraó como  sendo  uma manobra politica do Faraó, mas apenas feita, para testar a lealdade de todos a si, o recém nomeado Faraó.

Paralelamente a este hipotético teste que a sociedade julga ver, o anuncio da “não construção” cria um terrível problema filosófico e metafísico: como iria o Faraó subir até ao céu depois de morto, e levar a sua alma e as bagagens correspondentes, se não existiria pirâmide, como veiculo sagrado de transporte, para o fazer?

E é a partir destes dois pontos que kadaré demonstra como a perturbação entre a fauna cortesã de uma sociedade pode ser lançada – pelo “poder”.

Tal estado das coisas leva a que o Sumo-sacerdote, o Magico-astrólogo e algumas outras figuras da burocracia do Estado se afadiguem a convencer o Faraó de que deve ser construída a pirâmide.

Em baixo uma pequena transcrição de como o Magico-astrólogo tenta criar as bases do convencimento e da influência no Faraó. O Mágico astrólogo, primeiro,  identifica o problema, quando em acto de pensamento e reflexão para si próprio:

“…o bem-estar, ao mesmo tempo que tornava as pessoas mais independentes, mais livres de espírito …as tornava, de igual modo mais reticentes à autoridade em geral e nomeadamente ao poder do Faraó….”

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Percebendo que o seu poder poderia ser posto em causa por não querer mandar construir a Pirâmide e depois de ser persuadido pela fauna de cortesãos (pelos interesses), o  Faraó procura criar uma solução em que sinta ter sido ele próprio a encontra-la, (para fazer assim uma auto demonstração de poder) e para tal envia o Mágico-astrólogo para o Sahara para que este encontre uma solução que satisfaça os desígnios do Faraó.

40 dias depois este retorna e afirma ao Faraó que: “era preciso eliminar o bem-estar

Kadaré demonstra que, no exercício de poder, muitas vezes, não é o soberano/ o ditador/ o líder que de facto comanda, mas sim, julga que comanda, apenas influenciado por “sombras” de interesses que pairam à volta.

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Para eliminar o bem estar, surge a ideia de que é necessário fazer algo:

Mas o quê?

“Algo de fatigante, de destruidor para o corpo e o espírito e absolutamente inútil. Ou mais exactamente, uma obra de tal forma inútil para as pessoas que se tornasse indispensável ao Estado…!

O resultado:

“…o soberano e os seus ministros chegaram …. À ideia de um grande monumento funerário. De um grande túmulo.”

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Esta ideia fascinou sobremaneira o Faraó.

E dessa forma, o “novo” edifício principal do Egipto já não seria um templo, nem um palácio real, mas um túmulo. Progressivamente, o Egipto identificar-se-ia com este, e este com o Egipto. (o nacionalismo de mãos dadas com o poder…)

O Faraó fala – para simbolizar o facto de ter decidido tal – e diz:

“A pirâmide será construída. Será a mais alta de todas. A mais majestosa.”

É o “poder” simbólico do Faraó a manifestar-se.

E após o Faraó falar – uma metáfora do poder e do totalitarismo, aplicada de forma prática –  surgem os éditos reais a notificar o povo da construção.

O povo alegre ?!?! por o dia finalmente ter chegado – o início da construção da pirâmide – tem esta manifestação:

“As pessoas saem dos templos, aliviadas. Como somos felizes, diziam, por termos a nossa pirâmide.”

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No livro decorrem acções paralelas. São explicadas as  descrições das decisões técnicas dos arquitectos, a inveja dos embaixadores estrangeiros, a abertura e construção de estradas, necessárias para transportar os enormes blocos de pedra, vindos de barco Nilo acima, a escolha das pedras, o deslocamento dos funcionários públicos para sítios remotos para supervisionarem os trabalhos…tudo se descreve, para mostrar um grande elefante totalitário em movimento.

Assim é-nos dado a observar o simbolismo de toda uma burocracia a movimentar-se ao serviço de uma fachada de poder totalitário.

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Também existem os pormenores cómicos e irónicos: os boatos e as conspirações que dão origem a afastamento sucessivos de responsáveis pela construção, as manobras da policia secreta…

Ou quando se passa à construção propriamente dita, onde todas as pedras são numeradas e tem um nome atribuído.

A meio da construção keops exige ser colocado mais acima (o seu túmulo) no interior da pirâmide:

“Mais alto – disse ele com voz abafada – ainda estou muito abaixo.”

“Compreendo, majestade – respondeu o arquitecto – chefe”.

“- Quero ficar no centro – declarou keops”

“-Compreendo, Majestade.”

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Kadaré ironiza profundamente sobre o “aspecto humano” dos ditadores, por intermédio de interposta personagem – o Faraó Keops. Este, a determinada altura sente melancolia e tristeza por saber aproximar-se o fim da construção e reflecte “humanamente” sobre isso:

“As vezes arrependia-se de ter martirizado o Egipto daquela maneira!…

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Tudo isto também misturado com os problemas com os linguistas do reino e com os filhos de Keops, bem como uma, de várias conversas alucinantes, de Keops com o Magico-Supremo:

“o seu corpo conhecerá um fim, a sua alma nunca!

Mais uma metáfora para o poder e para o facto de os líderes políticos, passado algum tempo de estarem rodeados de pessoas que lhes dizem apenas sub-verdades agradáveis, se tornam completamente autistas para com a realidade, e são sempre bajulados com promessas de intemporalidade da sua obra…

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Também existem crónicas, brilhantemente macabras, acerca da construção usando as  pedras numeradas:

“Centésima nonagésima segunda pedra. Da pedreira de Abousir. Nada de especial”.

Ou:

Antepenúltimo degrau, da nona à quinta pedra, segundo o relatório do gabinete de controlo.

“…a sétima pedra …a pedra negra, a má…as causas do deslize permanecem misteriosas …mas ao nível do nono degrau, a queda acelerou. Foi para lá do décimo segundo que começou a esborrachar as pessoas…ao todo 90 mortos, sem contar com os feridos.

Ou:

“Sexta pedra…ainda que tivesse feito vitimas, parecia um anjo comparada com a anterior. Por isso chamaram-na de pedra boa.”

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Também existe a descrição “vista de fora”. Frustrado pelo facto de ter siso enviado para um local que não queria, e devidamente pressionado incentivado  pela sua sexualmente activa mulher, o Embaixador da Suméria consola-se através de um devaneio sexual analítico:

“Ela acariciou-lhe a barriga, depois o sexo. Reparava que, cada vez que enviava para a sua capital um relatório no seguimento do qual aumentava a esperança de ser nomeado ministro dos negócios estrangeiros, o sexo dela se molhava”.

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Após conclusão da “obra do regime” , o Faraó procura “interrogar-se”  e “saber” qual o “sentido” metafísico da construção. Kadaré ironiza com as tentativas de auto justificação que todos os protótipos totalitários demonstram após acções deste tipo.

Procurando “saber” interroga o Mágico acerca da pirâmide. E o Mágico responde:

— “Se construíste o maior túmulo do mundo é porque a tua vida é suposta ser a mais longa que se já se conheceu À face da terra. Nenhuma outra sepultura este poderia albergar.

Eu sofro – disse Keops.

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Após a obra concluída, os ladrões de túmulos roubam a pirâmide; um dos filhos do faraó é morto pelo irmão, para no futuro reinar e poder ter também a nova grande honra de construir mais uma Pirâmide, e os historiadores querem exumar o corpo do irmão morto, mas tal não lhes é permitido.

(Metáfora do poder totalitário ou democrático que se auto preserva de “olhares estranhos”…)

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É um livro algo datado, sobre totalitarismo e poder, e visando acima de tudo cravar estacas e acertar contas no comunismo albanês.

Contudo, quem resistir à leitura verá que é apropriado para reflectir sobre os tempos que correm, os tempos do medo diferente, … e onde a subversão da democracia é uma constante, tentando-se, sub-repticíamente, impor regras aparentemente democráticas (mas que não o são…) com uma regularidade constante.

Nota final: O livro será, possivelmente, difícil de adquirir, dado que foi publicado pela dom Quixote em 1994.

Contudo está acessível em bilbiotecas públicas.

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