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FILME – A SCANNER DARKLY – DISTOPIA.
No filme “A scanner Darkly” baseado na obra de Philip K. Dick, (PKD) um escritor de ficção cientifica já falecido, temos a descrição de uma distopia muito especial.
A história é simples e tem espantosos paralelos com aquilo que se passa actualmente, não só nos EUA, mas no mundo, e para o que interessa pelos danos colaterais, em Portugal.
Uma empresa privada, chamada New Path (Novo caminho) combate uma epidemia de droga num mundo futurístico.
Essa empresa criou um sistema de camuflagem – uma capa – que é posta por cima dos agentes policiais que a envergam, para evitarem ser reconhecidos no trabalho de agentes disfarçados – pelos seus colegas. (Uma forma irónica de PKD de apontar a corrupção como problema existente…)
Constitui também uma metáfora acerca dos comportamentos sociais de quase todas as pessoas. A colocação de máscaras, de capas de camuflagem constantemente em mutação. PKD coloca as “capas” na história de uma forma indirecta, subtil.
Criticando esta “necessidade” e de como a sociedade joga este jogo de forma inconsciente e a um ponto em que dá quase por adquirido que isso é a verdadeira natureza humana.
A New Path (Novo Caminho) é também uma metáfora não só pelo nome que tem ( O novo caminho – caminho novo para onde e o quê? Um constante “argumento de venda” de empresas charlatães…) como também pelo facto de, no fim do filme, percebermos que a New Path é a empresa, a entidade que é responsável pela existência da epidemia de droga, a chamada “Substancia D”.
É uma tremenda parábola do que é a sociedade actual, mesmo nas relações pessoais. Isto é:
– A coisa é o veneno e o seu próprio antídoto – por um preço, que apenas alguns pagam com custos pessoais tremendos e muitos poucos beneficiam dos lucros manchados de “sangue”.
– Uma parábola para o que são as corporações?
Fabricam a droga, comercializam-na, provocando uma epidemia (dois em 8 americanos viciados…) e providenciam (1) quer os centros de reabilitação e tratamento, quer (2) os meios para lutar contra a droga (droga essa que os próprios criam).
Aqui temos outra metáfora, infelizmente verdadeira, e ali apresentada de uma forma distópica muito suave mas dura e cínica, mas não tão afastada da realidade actual quanto isso ( PKD escreveu o livro em 1977) acerca do que é o actual capitalismo (ou lá o que isto é…).
Uma máquina de criar problemas complicados de resolver e soluções lucrativas ao mesmo tempo que cria problemas complicados de resolver para providenciarem soluções lucrativas.
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A segunda dimensão do livro é a apresentação dos EUA (isto é, de uma versão da humanidade) como uma sociedade totalitária, mas baseada em algumas coisas bastante simples para aplicar esse mesmo totalitarismo e que passam se não olharmos para elas, como sendo liberdade.
A sociedade é totalmente desprovida de valores – sejam quais forem os valores – e sujeita a vigilância electrónica constante, que se materializa em escutas telefónicas e electrónicas quase instantâneas. A sociedade é monitorizada, mesmo dentro das suas próprias casas, devido ao uso intensivo de tecnologia, exercida pela polícia e de forma sistemática.
Esta alta vigilância (o conceito) é praticada e os recursos para ela existem, enquanto que, ao mesmo tempo, a epidemia de droga da Substância D floresce, o que leva à situação de a polícia/meios electrónicos servirem para vigiar potenciais traficantes de droga, mas também, e com isso, vigiarem tudo o resto.
Infere-se isso do conceito do filme baseado na obra de PKD.
Os meios tecnológicos são a oportunidade e a oportunidade é providenciada pelos meios tecnológicos.
A técnica totalitária é ali descrita em todo o seu esplendor; de uma forma crua.
1. Existe uma ameaça que é amplificada para ser mais terrível do que é.
2. A guerra travada contra essa ameaça é perdida. A ameaça concreta ali é a droga ( Substância D) originária de uma misteriosa flor azul.
3. Para combater a ameaça terrível, são necessários meios terríveis ( no filme não se diz isso, mas infere-se no decorrer da acção) – uma massiva vigilância electrónica apoiada por agentes de polícia infiltrados e informadores, originando uma redução das liberdades individuais de todos.
4. O patriotismo (e o dever) é aplicado como chamariz e agentes infiltrados são colocados no meio dos sítios de trafico para desmantelarem o fornecimento, mesmo que venham a ser sacrificados por isso em nome de um “interesse superior”.
E conjugado com isto, existe a dimensão humana individual e a luta de contrários, os demónios interiores, o logro e a decepção entre pessoas que juram não o praticar, o jogo de opostos entre a identidade real e a identidade falsa de quem vive entre dois mundos totalmente distintos, acabando por ficar sem perceber quem é e em qual dos mundos vive.
Keanu Reeves é Robert Arctor, o agente infiltrado, que, por via da capa de camuflagem, destinada a ocultá-lo (a sua verdadeira identidade) dos seus colegas policias, se infiltra.
Arctor (Reeves) para chegar à origem do fornecimento tem que tomar a Substancia D”- e com isso começar a fritar os neurónios…
E a coisa complica-se quando chega ao seu chefe de nome Hank e este (também a usar uma capa de camuflagem) diz-lhe para “acelerar a vigilância pessoal e electrónica” aos suspeitos com quem ele se dá e que vivem todos na mesma casa” e especialmente ao suspeito Robert Arctor, o que é o considerado o mais suspeito e é considerado como sendo o “traficante que levará aos cabecilhas”.
A coisa é assim bizarra para Arctor que recebe ordens do seu chefe, para se vigiar a si próprio. Quase como colocado numa dimensão em que é um espelho que se vigia a si mesmo, numa enorme metáfora acerca de como as pessoas se reprimem e se vigiam a si mesmas para controlarem comportamentos (alguns lícitos e outros ilícitos) que outros (a sociedade) não tolera.
A dimensão do jogo de espelhos, da traição e da manipulação virá no fim a ser – também – revelada quando percebemos que a namorada de Arctor no seu trabalho (e quem lhe fornece a droga Substãncia D) como agente infiltrado é na realidade o seu chefe Hank, disfarçado.
Hank, quando em “modo disfarce” chama-se Donna Hawthorne e era o principal fornecedor a Robert Arctor da Substancia D, sendo ela (ele) próprio um consumidor de cocaina.
Pelo meio disto tudo, de um ponto de vista cinematográfico/diálogos temos a demonstração de alguns diálogos brilhantes, que simbolizam a “pedrada” que a substancia D causa levando os personagens a delírios retóricos absolutamente doidos, bem como a terem visões de insectos que os estão a invadir (efeitos alucinatórios da droga) ou paranóias de perseguições e de “misteriosos eles” que estão a vigiá-los.
Arctor vive com Barris ( Robert Downey Jr) e com Ernie Luckman ( Woody Harrelson) dois passados da cabeça do pior e ainda com Charles Freck (Rory Cochrane), um informador da polícia completamente alucinado pela droga e que julga que está permanentemente a ser assaltado por insectos.
A personagem Barris é o “elo” que leva aos cabecilhas da New Path. É também doido e paranóico para láde usar uma retórica muito bem educada entremeada com palavrões e perdas de calma.
Origina uma cena hilariante quando chega à esquadra da polícia (a Hank e a Arctor disfarçados nas suas capas ) e diz que quer revelar à polícia que Arctor é o Arqui-mestre do crime, de uma conspiração, conjuntamente com Donna Hawthorne, e quer, após providenciar as informações, que o deixem alistar-se na polícia?1?1
Hank (Donna Hawthorne) e Arctor ficam boquiabertos com o facto de Barris os estar a denunciar ali à frente, sem saber as suas verdadeiras identidades e da crença dele…
(A metáfora aqui é também a do segredo totalitário e dos métodos das sociedades totalitárias…)
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Simbolizando muitas coisas, relacionadas com drogas, mas não só, há uma parte no filme muito interessante. O chefe de Arctor (Hank/Donna Hawthorne) revela a dada altura, numa reunião de trabalho com Arctor, que já descobriu que ele é que é o agente infiltrado (devido à capa de camuflagem não se conheciam previamente…).
Mas devido ao uso por parte de Arctor da droga “Substância D, este começou progressivamente a perder a noção ( luta entre os hemisférios direito e esquerdo do cérebro) de quem é. Ao ser-lhe revelado pelo seu chefe que este sabe quem ele é, Arctor tem dificuldade em perceber e fica surpreendido ao perceber quem é, começando a ficar desorientado e confundido já tendo dificuldades em perceber quem é na realidade.
Uma metáfora simbólica, muito bem construída por PKD, também, relativamente à maior parte das pessoas na maior parte das suas vidas e ao estilo de vida e de sociedade que temos.
Em que por vezes, encontram( tem a sorte de) alguém que lhes revela quem verdadeiramente são…
Arctor acaba por ser cuspido pelo sistema, e posto fora, uma vez que está incapaz de trabalhar e de distinguir quem é verdadeiramente: a Droga “Substância D” fritou-lhe completamente o cerebro.
Mas é-nos dado a ver, como metáfora do que é a vida em sociedade, que Arctor apenas foi um voluntário relutante para fazer aquele serviço, e que foi sacrificado em nome de se conseguir colocar alguém dentro das secretas quintas de reabilitação da New Path.
Para, esperava-se, da parte da polícia, vir a conseguir provar que a New Path é a empresa que produz a droga Substãncia D”.
É já um Arctor despedaçado e quase completamente catatónico que está numa quinta após reabilitação e descobre no meio de campos de milho verdes a flor azul que dá origem á Substãncia D”. Arctor, já despedaçado, como tantas pessoas numa dada sociedade o estão emocionalmente, percebe qualquer coisa.
E pega numa flor azul, para levar como recordação aos seus amigos do centro de acolhimento – uma ideia que nos é lançada enquanto espectadores, de esperança, de redenção, de que tudo que de terrível a vida tem poder vir a ser ainda corrigido pelo sacrifício de alguns, entregando as provas dos culpados, aos que perseguem os culpados utilizando métodos tão culpados como os que os criminosos o fazem.
O filme é “difícil” e não tem perseguições de carros, nem senhoras sem roupa. É filmado pelos actores e depois foi trabalhado em computador para dar a imagem de um filme visto através dos olhos de um scanner, mas um scanner humano (se é que se pode pensar assim…
Ficou obviamente com notoriedade pela “parte técnica” e não pela história…(Qual é a novidade…)
PKD escreveu o livro, também como “manifesto” contra a droga e o trafico de droga. No fim do livro incluiu uma lista de pessoas que conheceu, que morreram de overdoses ou ficaram com lesões permanentes. PKD incluiu o seu próprio nome na lista de pessoas que ficaram com lesões permanentes.
Mas não é só sobre droga, mas também sobre uma sociedade totalitária e sobre o individuo e os seus sentimentos acerca de saber quem é e qual a sua posição dentro de tudo isto.